Uma comparação entre as abordagens francesa e brasileira sobre direito concorrencial e mercados de trabalho

Por Luiz Felipe Rosa Ramos, Sócio do Del Chiaro Pereira Advogados (DCPA), e
Quitterie d’Arche, Sócia do BORREL d’ARCHE

Quando o direito da concorrência encontra o direito do trabalho

Durante décadas, a regulação das relações de trabalho permaneceu circunscrita aos instrumentos clássicos do direito do trabalho – negociação coletiva, legislações sobre salário-mínimo, normas de duração da jornada – enquanto as autoridades de defesa da concorrência limitavam-se à análise dos mercados de bens e serviços. Essa divisão jurisdicional, contudo, vem progressivamente se esvaindo. Ao redor do mundo, observa-se a transposição do instrumental clássico do antitruste – proibições de cartel, restrições à troca de informações, análise do poder de compra – para a esfera da contratação, retenção e remuneração de trabalhadores.

Diversas forças convergentes aceleraram esse movimento. Por um lado, o agravamento das desigualdades de renda – mesmo em algumas das economias mais avançadas – suscita dúvidas quanto à adequação dos instrumentos tradicionais do antitruste para mitigar tais disparidades. Por outro lado, o declínio dos chamados cartéis “clássicos” levou as autoridades de concorrência a redirecionar sua vigilância para condutas menos convencionais. Ademais, a crescente interconexão entre a organização industrial e a economia do trabalho evidenciou os riscos de monopsônio e de conluio nos mercados de trabalho. Finalmente, a escassez de competências estratégicas em setores como tecnologia digital, engenharia e saúde pode incentivar empresas a restringirem a mobilidade de talentos por meio de acordos de não aliciamento (no-poaching) ou de fixação de salários[1].

França e Brasil constituem estudos de caso particularmente reveladores. Em junho de 2025, a Autoridade da Concorrência francesa (Autorité de la concurrence – FCA) proferiu sua primeira decisão sancionando acordos de no-poach como uma infração autônoma (Decisão 25-D-03[2]), enquanto, desde 2021, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) no Brasil instaurou diversas investigações, majoritariamente voltadas a trocas de informações de recursos humanos e, mais recentemente, a um caso que inclui acusação de no-poach.

Este artigo insere tais desenvolvimentos na tendência internacional mais ampla de um “antitruste social”, analisando as aproximações jurisprudenciais e as diferenças metodológicas entre os dois países, extraindo lições práticas para empresas que atuam na França e/ou no Brasil e oferecendo reflexões sobre o futuro do direito da concorrência como instrumento de proteção à mobilidade dos trabalhadores.

A ascensão do “labor antitrust”: um movimento global, mas desigual

A crescente atenção das autoridades de concorrência às questões de mercado de trabalho insere-se em uma tendência global, ainda que as abordagens variem significativamente. Nos Estados Unidos, um marco importante foi a publicação, em 2016, das “Diretrizes Antitruste para Profissionais de Recursos Humanos” [3], que classificaram os acordos de não aliciamento e de fixação de salários como ilícitos per se. A União Europeia, seguida por diversos Estados-membros, desde 2010 tem adotado princípios semelhantes por meio de pareceres, relatórios e decisões, como a condenação a duas empresas de entrega de alimentos por um acordo recíproco de no-poach[4]. Além dessas regiões, países como Japão[5], Reino Unido[6], Canadá, Peru, Colômbia e México já emitiram diretrizes ou iniciaram investigações, sinalizando uma convergência internacional crescente. Mas diferenças entre as abordagens das jurisdições persistem, como ilustraremos a partir dos exemplos francês e brasileiro.

França: rumo à caracterização de acordos de RH como ilícitos por objeto

Uma inflexão decisiva ocorreu com a Decisão 25-D-03, por meio da qual a FCA, pela primeira vez, sancionou dois acordos bilaterais de não aliciamento considerados “em isolamento”, isto é, independentemente de qualquer colusão mais ampla, como a relativa a preços[7]. Celebrados entre empresas concorrentes nos setores de engenharia e serviços de TI, tais acordos resultaram na imposição de multas que totalizaram 29,5 milhões de euros. A FCA confirmou que, quando considerados em isolamento, esses pactos configuram condutas anticompetitivas equivalentes a cartéis de compra voltados à oferta de trabalho e, portanto, constituem restrições da concorrência por objeto, dada sua natureza, finalidade e contexto jurídico-econômico. Importa ressaltar que a FCA não abriu mão de uma análise contextual de mercado, especificando a categoria de empregados envolvidos e a escassez de suas competências, fatores que tornaram plausível e nociva a coordenação.

Ainda que tenha diferenciado, na decisão, entre acordos gerais de no-poach (sancionados) e cláusulas de não solicitação de pessoal (não sancionadas, por serem direcionadas a categorias específicas de trabalhadores, a projetos determinados ou de curta duração), a FCA deixou claro que tal análise não afasta a possibilidade de que, em casos futuros, também essas cláusulas possam vir a ser qualificadas como restrições por objeto.

Na prática, violações de ordem trabalhista passaram a ser tratadas como infrações autônomas ao direito da concorrência, sujeitas aos mesmos riscos sancionatórios (inclusive com aplicação de coeficientes de gravidade) previstos para cartéis tradicionais, tendo a FCA enfatizado o papel central do trabalho como parâmetro concorrencial. As empresas, assim, devem adaptar seus programas de conformidade, integrando os departamentos de RH como elo essencial da política de compliance concorrencial.

Brasil: uma abordagem exploratória centrada na troca de informações

Desde 2021, o Brasil iniciou ao menos quatro casos relevantes: três relativos à troca de informações sensíveis (como condições de remuneração e políticas de RH) e um envolvendo, de forma embrionária, acordo de no-poach. O CADE indicou que aplicaria uma presunção relativa de ilicitude às trocas de informações de RH.

Do ponto de vista metodológico, a postura atual do CADE apresenta características distintivas. Primeiro, não há, até o momento, estudos de mercado detalhados, o que deixa indefinidos os contornos do mercado de trabalho relevante – pressuposto indispensável para avaliar o poder de compra monopsônico. Segundo, algumas investigações abarcam dezenas de empresas de setores econômicos díspares, dificultando sobremaneira a verificação de eventuais efeitos coordenados. Terceiro, os casos recentes são pioneiros em tratar a simples troca de informações relacionadas ao trabalho como presumidamente ilícita, posição que contrasta fortemente, por exemplo, com a abordagem mais matizada da Corte de Apelações do Segundo Circuito dos EUA no caso Todd v. Exxon[8]. Por fim, o CADE investiga múltiplas empresas de diferentes mercados de produto por supostamente compartilharem informações concorrencialmente sensíveis por meio de seus departamentos de recursos humanos. Tal abordagem expansiva diverge, notavelmente, da decisão da Comissão Suíça da Concorrência, de 2024, que, em contexto análogo, optou por não impor sanções, substituindo-as por diretrizes e destacando a heterogeneidade dos setores e empresas envolvidos[9].

Análise comparativa: convergências e divergências

Uma análise comparativa revela tanto convergências quanto divergências entre as abordagens francesa e brasileira. Na França, a conduta analisada na decisão de 2025 refere-se a acordos bilaterais de no-poach; no Brasil, o foco tem recaído sobre trocas de informações, estando os casos de no-poach apenas começando a aparecer. A FCA qualifica tais acordos como restrições por objeto, mediante análise contextual detalhada, ao passo que, no Brasil, parte-se de uma presunção de efeitos anticompetitivos, mas sem definição clara do mercado relevante.

Na França, a legalidade de cláusulas de não solicitação tem sido aferida com base em critérios de proporcionalidade, duração, alcance e pertinência em relação ao interesse contratual que buscam proteger, ao passo que, no Brasil, esses parâmetros ainda não foram claramente definidos para cláusulas firmadas entre empresas fora do contexto de atos de concentração. No plano internacional, a França se alinha às tendências prevalecentes na União Europeia e nos Estados Unidos, enquanto o Brasil parece ainda em processo de formulação de sua própria trajetória.

Sob a perspectiva procedimental, merece destaque o fato de que as práticas que ensejaram a decisão francesa de 2025 chegaram ao conhecimento da FCA por meio de pedido de leniência, o que constitui ponto de convergência com o Brasil, onde as investigações até agora também decorreram de acordos de leniência.

Em última análise, ambas as autoridades afirmam buscar proteger a mobilidade e a remuneração dos trabalhadores, mas a França fornece maior segurança jurídica por meio de um teste de proporcionalidade, enquanto o Brasil corre o risco de gerar incertezas devido à ausência de um marco analítico estável. Tal divergência pode dificultar a gestão de RH em grupos multinacionais que operam nos dois países.

Orientações práticas para empresas

A FCA reafirmou recentemente sua intenção de manter alto nível de vigilância, especialmente no setor digital, alegadamente caracterizado por escassez e relevância estratégica da mão de obra, como reiterado em seu parecer sobre inteligência artificial generativa (2024)[10]. Trata-se, portanto, de um chamado à cautela para as empresas.

As companhias devem evitar estritamente qualquer acordo geral de no-poach ou de fixação de salários com concorrentes, seja de forma escrita ou verbal.

No que concerne à troca de informações de RH, deve-se consultar o departamento jurídico antes de compartilhar qualquer tabela salarial, políticas de bônus e demais elementos de remuneração (inclusive benefícios) de forma bilateral ou multilateral com outras empresas. Dada a atual conjuntura investigativa, se o benchmarking for necessário, deve ser realizado com dados agregados e anonimizados, fornecidos por terceiros independentes, de acordo com orientações jurídicas. As equipes de RH devem ser plenamente integradas aos programas de conformidade concorrencial, mediante treinamentos regulares, cláusulas contratuais padronizadas e procedimentos internos de alerta.

É igualmente essencial realizar uma auditoria minuciosa das cláusulas existentes (incluindo as de não-solicitação, não-concorrência e garden leave), bem como das práticas adotadas na França e no Brasil, assegurando sua compatibilidade com os respectivos regimes jurídicos e realizando ajustes conforme necessário. Em caso de busca e apreensão ou requisição de informações, as empresas devem acionar imediatamente seus departamentos jurídicos, resguardar o sigilo profissional e cooperar com as autoridades, preservando simultaneamente seus direitos de defesa.

Rumo a um direito da concorrência que proteja os trabalhadores?

França e Brasil exemplificam um debate mais amplo – e para muitos, urgente – sobre a própria finalidade do direito da concorrência. Cresce a voz de doutrinadores e autoridades que defendem a expansão da política concorrencial para além de seu enfoque tradicional no bem-estar do consumidor, passando a incorporar também o bem-estar dos trabalhadores como parâmetro relevante. Enquanto a França já assentou as bases de uma doutrina relativamente clara, o Brasil ainda se encontra em fase exploratória.

A questão que permanece é: até que ponto essa expansão avançará? Em que medida o direito antitruste assumirá funções tradicionalmente desempenhadas pelo direito do trabalho, como a regulação da mobilidade e dos salários? Como lidar com o risco de excesso de repressão que poderia sufocar sinergias legítimas de gestão de recursos humanos[11]? A resposta dependerá da capacidade das autoridades em refinar seus instrumentos analíticos e das empresas em internalizar uma cultura de conformidade equilibrada. O debate está em curso e seu desfecho moldará o equilíbrio entre flexibilidade econômica e proteção ao trabalhador na próxima década.

Publicado no ConJur e no Debate Jurídico.


Notas de Rodapé

[1]: CMA, Microeconomics Unit « Competition and Market Power in UK Labour Markets », 25 de janeiro de 2024.
[2]   Autorité de la concurrence (FCA), Decisão n.º 25-D-03, de 11 de junho de 2025, relativa a práticas de n-poach nos setores de engenharia, consultoria tecnológica e serviços de TI
[3]: Department of Justice, Antitrust Division, e Federal Trade Commission, “Antitrust Guidance for Human Resource Professionals”, outubro de 2016 (inativa). Esta orientação foi substituída por: U.S. Department of Justice e Federal Trade Commission, “Antitrust Guidelines for Business Activities Affecting Workers”, janeiro de 2025.
[4]: Comissão Europeia, Summary of Commission decision of 2 June 2025 relating to a proceeding under Article 101 of the Treaty on the Functioning of the European Union and Article 53 of the EEA Agreement.
[5]: Japan Fair Trade Commission, “Report of the Study Group on Human Resource and Competition Policy”, 15 de fevereiro de 2018.
[6]: CMA – Employers advice on how to avoid anti-competitive behaviour – 9 de fevereiro 2023.
[7]: Até recentemente, práticas de recursos humanos somente eram sancionadas quando integravam cartéis mais amplos, como aqueles voltados à fixação de preços: FCA, 25 June 1997, Decision n°97-D-52; FCA, 29 September 2016, Decision n°16-D-20 ; FCA, 18 October 2017, Decision n°17-D-20; FCA, 21 May 2024, Decision n°24-D-06 (decision which is the subject of a pending appeal before the Paris Court of Appeal) ; FCA, 18 October 2017, Decision n°17-D-20 ; FCA, 2 February 2009, Decision n°09-D-05; Confirmed on appeal (Paris Court of Appeal, 26 January 2010, No. 09/03532) and on cassation (Commercial Chamber of the Court of Cassation, 29 March 2011, Decision n°10-12.913).
[8]: Todd v. Exxon Corporation (2001), Second Circuit Court of Appeals.
[9] Ver https://globalcompetitionreview.com/review/europe-middle-east-and-africa-antitrust-review/2026/article/switzerland-landmark-decision-clarify-labour-market-jurisprudence-further-guidelines-awaited.
[10]: Autorité de la concurrence (FCA), Parecer n.º 24-A-05, de 28 de junho de 2024, relativo ao funcionamento concorrencial do setor de inteligência artificial generativa.
[11]: A respeito do atual debate acadêmico sobre o tema, ver, entre outros, Eric A. Posner & Ioana E. Marinescu, Why Has Antitrust Law Failed Workers? (2020) 105 Cornell Law Review 1343 (2020); Hiba Hafiz, Labor Antitrust’s Paradox (2020) University of Chicago Law Review: Vol. 87: Iss. 2, Article 5. Richard A. Epstein,The Application of Antitrust Law to Labor Markets -Then and Now (2022), 15 New York University Journal of Law and Liberty 327.